A velha tesoura preta

Ela se instalou solenemente na pensão de Arminda, em Curvelo (MG), como um mistério que perdura há décadas. Ninguém soube ao certo como ou de onde veio aquela grande e preta tesoura de ferro. Uma das versões mais aceitas é a de que um parente a trouxe no fundo da sua viajada mala, vindo da Europa no fim do século 19, como presente de um amigo alfaiate. O pesado, pontudo e cortante artefato se tornaria uma especial testemunha da nossa história familiar. 

Como elo atemporal entre gerações, a velha tesoura segue desafiando o tempo, cortando papeis, panos e outros materiais que fazem parte da rotina da minha casa natal. Minha mãe, desde sua mais tenra infância, guarda memórias da tesourona que viajava entre cidade e fazenda para cumprir variadas funções nas mãos de cozinheiras, costureiras, parteiras e floristas. Para mulheres de ofícios diversos, a ferramenta sempre afiada se mostrou uma incansável aliada. 

Robusta, pronta para qualquer desafio, ela se deslocava de um lugar para outro da forma mais singela, no bolsão frontal do avental de brim de minha bisavó Du. Do canteiro de hortaliça ia para os bancos de madeira, cindindo ou recortando tudo o que fosse necessário. Na fazenda, podava arbustos de rosa e cuidava dos pés de laranja. Nas mãos habilidosas, ela era a elegância em pessoa, executando os moldes para vestidos, calças e camisas, incluindo até as finas vestimentas de casamento. 

De geração em geração, ela cortou fitas de cetim para embrulhos de presentes e laços de cabelo, preparou roupas de todos os familiares, extraiu pétalas de tecido gomado para as flores artesanais de Tia Hebe, Arminda e minha mãe. O que mais encanta na história dessa tesoura foi, contudo, sua tarefa mais íntima, a de cortar o cordão umbilical de todos os 10 filhos da vovó Du. O seu lugar de repouso final, após o dia de trabalho árduo, é até hoje a gavetinha superior da centenária máquina de costura Singer.

Suja de terra, engasgada com fiapos ou lambuzada de gordura, basta levá-la à torneira para um banho com sabão em barra ou detergente e deixá-la pronta para a próxima missão. Essa batalhadora versátil era capaz de cortar qualquer coisa plana, mas também tinha o dom de unir corações da família nos momentos mais desafiadores. Serviu para cortar cabelos de meninas irrequietas e para confeccionar ataduras de machucados na labuta.

Ela foi usada até para criar a fantasia de anjinho que a minha mãe usou na coroação de Nossa Senhora, a adorável cerimônia do mês de maio. Até o renomado estilista curvelano Alceu Penna a utilizou em sua mesa para compor uma peça única. Na cozinha do fogão à lenha da pensão, ela separava folhas de alface e, a partir delas, extraiam-se tirinhas para a salada. 

A tesoura resistente, versátil e prestativa era feita de material indestrutível. Por isso permanece imponente até hoje, sem nunca enferrujar. As suas duas partes delgadas unidas em arrebite, que também nunca saiu do eixo, forjam o modelo de durabilidade de um labor interminável e formam o símbolo do legado que deixou para a nossa família. Os 30 centímetros de ferro escuro não dão a dimensão correta do artefato. Nele estão a união, a tradição e trajetória que honram e transcendem a minha gente. Em cada corte que deu, um coração a outro juntou. 


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