Saudosa bicharada


 

Quando éramos crianças naquela pequena Curvelo (MG) dos anos 1970 e 1980 o nosso espírito desbravador nos punha em contato constante com seres que parecem hoje uma saudosa fauna de tempos perdidos. No quintal, dentro do lar, nas ruas e na zona rural, tínhamos à disposição um mini zoo que agora povoa a minha mente na forma de doces memórias. A bicharada deixou saudades.

Os dias e as noites de travessuras e descobertas tinham fiéis companheiros de quatro patas e poucas raças. O cão pequinês da velha senhora, sempre na janela, fazia o papel de vigia das nossas brincadeiras na calçada. A missão do cachorro vira-latas era perambular entre mesas de boteco nas madrugadas, ganhando petiscos graças à cara de pidão. Bonito mesmo era o pastor alemão da Polícia Militar.  

Todos os penados da família eram protegidos em gaiolas colocadas próximas ao teto antes de o sol se pôr, distantes dos olhares maliciosos dos felinos. Os gatos, com as suas longas serenatas noturnas, tiravam o sono de quem tinha de acordar cedo para trabalhar. Já os galos despertavam muita gente cedinho, com o seu cacarejar urbano.

O cantarolar alegre do canário amarelo com as suas notas divinas ecoava na cozinha, enquanto o papagaio soltava frases irreverentes do alto do seu poleiro, arrancando risadas. Quem poderia esquecer do pássaro preto na gaiola, inclinando a cabeça para pedir receber carinho? Sua melodia serena em busca de afeto tocava almas.

As pererecas pequeninas podiam surgir de forma quase mágica em baldes, caixas de água, reservatórios de vasos sanitários, banheiras e até em boxes de chuveiro, grudando e pulando conforme a conveniência. Conterrâneos mais velhos diziam que os anfíbios deixavam a água do filtro de barro limpa e fresquinha. Será? Só sei que sob a pedra grande do nosso quintal havia um sapão feio, ocultado ali por refúgio prolongado.

Os besouros carregando tocos de pau e outras tranqueiras eram nossos pequenos heróis transportadores. Que fenômeno era o tal “bichinho de chuva”, que vinha em bandos, naquelas pequenas nuvens pretas após o aguaceiro, pairando em postes de luz, antes mesmo do anoitecer. E as insuportáveis muriçocas, elas merecem um capítulo à parte.

Mas o que dizer das formigas? As lava-pés eram pestinhas que invadiam as nossas brincadeiras presenteando os descalços com coceiras e ardências até o calcanhar. As cabeçudas, por sua vez, eram corajosas a ponto de não soltar as suas presas nem mesmo depois de mortas. Ainda tínhamos umas formigonas que até criavam asas. Dos vermes, contemplávamos as minhocas, fiéis ajudantes nos canteiros.

Vindos dos terrenos baldios e roseiras das residências, lembro-me das lagartas verdes fosforescentes, um enigma em tons brilhantes e pelinhos tóxicos, a ensinar como admirar e temer a beleza de criaturinhas. Guardados em caixas de fósforo, pirilampos e vaga-lumes, delicadas luzes na escuridão, eram nossos mimos de quarto até dormir. 

As centopeias e as lacraias misteriosas se enroscavam em espirais ao menor toque de vareta. As lesmas, por sua vez, espumavam quando tocadas pelo sal. E os caramujos com casas nas costas faziam do jardim condomínio popular, enquanto aranhas fininhas teciam teias volumosas e as suas primas cabeludas e caranguejeiras botavam medo.

As lagartixas de rabos longos e regeneráveis batiam ponto nos cantos, paredes e tetos dos cômodos. E os calangos, por sua vez, eram as figurinhas mais rápidas e fáceis nos cerrados. A música de fundo da roça era responsabilidade de bem-te-vis e trinca-ferros. Nas fazendas, sons de bois e cavalos criavam sinfonia rural. 

Já os grilos e as cigarras nos convidavam a sonhar acordados com sua cantoria, enquanto os louva-deuses nos lembravam da delicadeza da vida. Mas quanto às baratas, melhor chamar o seu Joaquim dedetizador.

O ocaso trazia o baile dos morcegos entre folhas da mangueira. Só zumbidos do bambu sendo rodado no ar serviam de arapuca para eles. As reais pragas hematófagas de cabeça e pés, tão pequenas e incômodas, nos cobravam higiene e cuidado com a saúde. Piolhos travessos faziam encontros ficarem arriscados e bichos-de-pé teimosos tornavam solo sujo campo de parasita.

E aquela mosquinha preta de banheiro me intrigava como sutil e volantes gravatinha-borboleta. As borboletas grandes eram dançarinas nas flores do jardim, enquanto as pequenas brancas salpicavam o chão escuro dos brejos. Peixinhos como piaba e mandi cercavam nossos pés em beiras d’água. Mas ali perto também tinham cobras perigosas que caboclos colocavam em vidros com álcool.

As copas das árvores fícus eram a moradia da multidão de pardais que sempre nos saudava com algazarra no cair da tarde. Menos comuns eram os bichos de excêntricos criadores, como porquinhos da índia e coelhos. E que momentos inesquecíveis tive ao avistar um lobo guará, fugitivo de queimada, no alpendre do vô Ely, e os macaquinhos sagui danados roubando bananas do quintal ou se remexendo muito no alto de buritis. 

PS: Olhando para trás, percebo que essa fauna familiar me ensinou o importante papel do encanto e da inocência para os meninos e as meninas de todas as idades.

 

 

 

 

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