A revolução silenciosa do carro elétrico

Sílvio Ribas

Em setembro de 1969, o engenheiro mecânico João Augusto do Amaral Gurgel realizou o sonho de criar a pri
meira montadora de automóveis 100% brasileira. A Gurgel Motores tinha tecnologia própria e o seu criador era obcecado por inovação. Cinco anos após sua estreia, a fabricante paulista lançava o pioneiro carro elétrico Itaipu E150, nome da hidrelétrica que estava em construção no Paraná para figurar como a maior do mundo.

O modelo exótico para a época tinha só dois lugares, design geométrico e 460 quilos, dos quais quase dois terços em baterias. Foram montados 27 protótipos, que são hoje itens de colecionadores. Fazendo 60 quilômetros por hora de velocidade máxima, o Itaipu iniciaria produção em série no fim de 1975, junto com a expansão da fábrica da Gurgel em Rio Claro (SP), mas trombou em desafios próprios dos veículos elétricos.

Em 1980, Gurgel ainda tentaria emplacar no mercado o segmento elétrico com o Itaipu E400, furgão com 80 quilômetros de autonomia que integrou a frota da extinta Telesp. Mas essa investida também não foi longe, saindo de linha dois anos depois, com mil unidades vendidas. Quase 50 anos após a aposta alternativa a motores a combustão da fabricante que desapareceu em 1996, a realidade atual é outra bem diferente e radicalmente favorável.

Governos de vários países, montadoras antigas e novas de todos os portes e diferentes classes de consumidores estão engajados na tarefa de concluir a audaciosa transição para a dominância dos veículos elétricos até o fim da próxima década. O empurrão que faltava foi dado no começo do ano, com a apresentação ao Congresso dos Estados Unidos do plano de restruturação e fortalecimento econômico do governo do presidente Joe Biden.

Força motriz das metas da Casa Branca com trilhões de dólares em investimentos para a maior economia do planeta está na extinção programada dos carros e caminhões movidos a combustíveis fósseis. A estratégia se insere nas metas americanas e globais para combater as mudanças climáticas. A razão disso é que um quarto das emissões de gases de efeito estufa dos EUA vem do transporte, com grande dificuldade de redução devido ao volume de veículos em circulação lá.

De qualquer maneira, os carros elétricos e híbridos, também chamados de limpos, estão com a popularidade em alta no mundo. Eles representam só 2% do total de modelos vendidos nos EUA, mas já são 5% na China e 10% na Europa, esses três os maiores mercados globais. No Brasil, a participação atingiu em 2020 a marca de 1%, com 19,7 mil veículos leves vendidos, e hoje ruma para alcançar o total de 50 mil em circulação nos próximos dias.

As versões atuais somam cada vez mais atrativos, começando com apelos de sustentabilidade ambiental, maior conforto, baixo custo de manutenção e autonomia em torno de 400 quilômetros rodados. No rastro da revolução silenciosa (sim, os carros elétricos também não fazem poluição sonora), os carros elétricos impulsionam outras tendências transformadoras do setor de transporte, como compartilhamento, automação e rastreabilidade.

Dentro deste quadro em que eletrificar a propulsão de veículos rima com descarbonizar o globo, analistas financeiros, ambientalistas, pesquisadores e cidadãos exigentes, junto com governantes de plataformas audaciosas, pressionam legisladores para que sintonizem marcos regulatórios aos seus objetivos. As medidas precisam ser proporcionais aos grandes alvos. EUA e China projetam neutralidade de carbono em 2050 e 2060, respectivamente.

Com incentivos estatais, alguns países exibem veículos limpos na paisagem, como a Noruega, que ano passado vendeu mais desse tipo que “normais”. Para ter futuro, montadoras prometem aposentar logo motores a explosão, como a General Motors, que fixou a meta para 2035. Aí se insere a decisiva tarefa de reduzir o preço final, via maior escala produtiva. Para ajudar nisso, governos e empresas guiadas pelo marketing verde eletrificam suas frotas.

Ao planejamento global de mudanças atreladas à eletro-mobilidade se impõe a constituição de uma malha capilarizada de postos para recarga, além do desenvolvimento de novos hábitos e d expertise mecânica. No emergente mercado criado pela lógica do recarregar em vez de abastecer carro, se associam distribuidoras de eletricidade e, sobretudo, players do mercado livre de energia, com especial estímulo à geração doméstica. 

Os veículos movidos a eletricidade já eram conhecidos desde o começo do século 19, advento da indústria automobilística. Mas só ficaram atraentes há 20 anos, quando a Toyota passou a produzir em massa o híbrido Prius. Anos depois surgiu a Tesla com o esportivo 100% elétrico Roadster. Hoje, essa empresa do bilionário Elon Musk vale sete vezes mais do que a GM. Eis a larga estrada aberta ao futuro. E quem está nela vai acelerar ainda mais. Pena que o Gurgel não esteja mais por aqui.

PS: O primeiro veículo a atingir velocidade máxima de 100 quilômetros por hora, La Jamais Contente, era 100% elétrico. Em 1889, o carro em forma de torpedo do belga Camille Jenatzy deixou todos os demais comendo poeira.


Comentários