Ética, imprensa e pós-verdade

Sílvio Ribas

Jornalista, assessor parlamentar e pesquisador do Ibmec

Em tempos de fake news, “fatos alternativos” e débâcle dos grupos de mídia tradicionais diante do oceano de interatividade online, o jornalismo passou a enfrentar desafios técnicos e, sobretudo, éticos ainda mais complexos e decisivos que os conhecidos desde seu surgimento.

O atual debate em torno da credibilidade e dos efeitos da informação que circula de forma instantânea por inúmeros canais e alcance praticamente ilimitado, em escala global, pode resultar, contudo, na revalorização dos alicerces da prática jornalística, de modo a reposicioná-la de forma mais consistente no ingovernável ciberespaço.

Hoje, mais do que nunca, cabe aos jornalistas praticantes e aos estudiosos da atividade desses, recorrer aos princípios basilares do jornalismo para defender a sua perenidade, como sempre ancorada na ética profissional.

No Brasil, grandes nomes das redações se tornaram também referências maiores da conduta desejada daqueles que constituem um setor essencial à preservação e o fortalecimento da democracia e da cidadania. Eles deram uma contribuição única à defesa da dignidade de um ofício e à formação de seguidores quando teorizaram sobre como e porque proceder eticamente na produção do material noticioso oferecido ao público.

O primeiro nome que se impõe nessa discussão toda é o do jornalista brasileiro Claudio Abramo (1923-1987), autor do livro “A Regra do Jogo”, publicado em 1988. É dessa obra a frase-síntese usada por muitos mestres e leigos da imprensa: “O jornalismo é, antes de tudo, a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter”. 

Conectado ao contexto atual que espicaça a imprensa, outra referência óbvia é de Eugênio Bucci, que publicou o seu “Sobre Ética e Imprensa” em 2000.

Responsável por relevantes mudanças de estilo, formato e conteúdo dos dois maiores jornais paulistas, O Estado de São Paulo (1952-1963) e a Folha de São Paulo (1975-1976), Abramo mostrou que a força da profissão está no rigor ético, embora a ética para o jornalista não tenha qualquer elemento mais nobre da esperada de qualquer outro profissional.

“A Regra do Jogo”, um dos melhores livros sobre jornalismo do país, apresenta uma visão crua e desapaixonada da profissão. “O jornalismo é um meio de ganhar a vida, um trabalho como outro qualquer; é uma maneira de viver, não é nenhuma cruzada”, escreveu ele, colocando a atividade no seu devido lugar e esvaziando o pretensioso discurso da tal “missão jornalística”, o que, em última instância, pode até mesmo conspirar contra a ética. 

Ao discorrer sobre a “ética do marceneiro”, Abramo dá a dimensão precisa à ética jornalística, tão cara e tão vilipendiada nos dias atuais. Ele explica que a ética do jornalismo é como a ética do marceneiro pelo simples fato de que “não existe ética específica do jornalista”. Em resumo, a ética desse profissional “é a mesma do cidadão”, pois o seu limite “é o limite do cidadão”.

Considerando que jornalismo é muito mais prático que teórico, Bucci avança na direção do jornalista como cidadão comum, mas salienta os riscos inerentes ao fato desse profissional lidar com privilégios e com situações que um cidadão típico não tem. Isso implica no exame cotidiano de consciências. “Jornalistas identificados com distintas doutrinas podem cometer o pecado de assassinar reputações, vitimando pessoas de diferentes matizes políticos ou religiosos”, exemplificou.

A tentação de sobressair-se nas multidões, de suplantar colegas e de fazer a diferença no noticiário sempre rondou as mentes e os hábitos do jornalista. “Cuido de pequenas e grandes notícias. E se não tem nenhuma, saio e mordo um cachorro”, confessa o jornalista Charlie Tatum, protagonista do filme “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), para convencer o senhor Boot, dono do jornal de Albuquerque, que deveria ser contratado. A expressão vem do conceito de notícia, segundo a qual “cão morde homem” não é, mas o inverso, sim.

Esse longa metragem trata de forma até profética para a época da praga conhecida na imprensa sensacionalista nos dias de hoje e que ganhou patamar avassalador e multifacetado nas redes sociais. Tatum, brilhantemente interpretado por Kirk Douglas, é um repórter de um pequeno jornal que descobre numa cidadezinha a chance de transformar um fato, a prisão de um homem numa caverna, num longo espetáculo midiático, manipulando dados e explorando a curiosidade mórbida do público.


IMPARCIALIDADE

Outro fato com o qual a ética jornalística tem de suportar é o mito da neutralidade. Muito mais do que especular sobre o que algum repórter ou editor seria capaz de fazer para vender jornal, é preciso explicitar qual regramento ou postura seria capaz de lastrear a confiança depositada pelo público nessas pessoas, mesmo que elas estejam fora do horário de serviço. 

Claudio Abramo dizia que a ética do jornalista devia ser equivalente à ética do carpinteiro, ofício que o próprio tinha como hobby. Estabeleceu tal relação porque não é a profissão que deve determinar a maneira como nos comportamos. Pelo contrário. Somos um ente único e nosso caráter não muda ou se tornam mais aceitáveis conforme objetivos e circunstâncias.

O testemunho de Abramo mostra ao leitor os limites éticos do jornalismo. O de Bucci, por sua vez, aponta as cores reais de vícios e virtudes na atividade. Entre eles, cita os excessos do uso de vazamentos de documentos legais com más intenções do vazador e do emprego de fontes não-reveladas (o chamado off jornalístico, protegido pelo princípio de sigilo da fonte, abrigado na Constituição). Ao fim, pede cautela para recursos sem os quais não se faz bom jornalismo.

Com o tempo, o jornalismo foi deixando de ser apenas a prestação de serviços associada à expressão cívica da cidadania para se converter em empreendimento de mercado. Eugênio Bucci abre esse largo parênteses para lembrar logo em seguida que a função democrática da imprensa é que exige uma ética. Mas qual ética? A mesma que assentou Abramo, indica ele, mas com o diferencial de se prever alguma regulação estatal contra abusos, o que é polêmico.

Na luta diária contra o abundante e “gratuito” conteúdo difundido pela rede mundial de computadores, a chama mídia convencional, feita por empresas tradicionais e marcas consagradas, iniciaram uma batalha para confirmar a credibilidade da informação não apenas como diferencial, mas como essência do jornalismo visto como tal.

Somente o conceito flagrantemente antiético de pós-verdade, extraído da cotidiana tática de difusão de notícias falsas para distrair, desinformar e confundir o público, pode inspirar uma reação bem-sucedida dos grandes veículos impressos. Com armas do marketing, da regulação e da judicialização, além de ferramentas digitais de controle, essas empresas poderão sair de suas trincheiras e interromper seu processo dramático de perda de receita e de leitores.


TECNOLOGIA A FAVOR

A ética é, pois, ao mesmo tempo antídoto para a falta de qualidade das notícias nascidas e veiculadas na internet e lastro moral e mercadológico para a sobrevivência da imprensa forjada nas prensas. O jornalista, visto como um custo difícil de sustentar, pode passar a ser o único fiador possível de uma construção permanente de credibilidade no conteúdo verdadeiramente noticioso em meio às manadas de postagens sem qualquer crivo ético.

Pelo menos no primeiro momento, o jornalista disporia da tecnologia inteiramente a seu favor, um ponto de apoio desejável. E não mais um mero e improvável substituto, como alguns analistas desprovidos de senso crítico e de critérios sustentáveis chegam a dizer. Na prática, será a valorização da velha e boa apuração jornalística. Tal qual é a valorização do trabalho do marceneiro entregue no prazo e impecável nas medidas traçadas logo na encomenda.

Jornalistas serão responsáveis por alimentar a democracia, a economia e a vida urbana com dados sobre os acontecimentos que serão cobertos jornalisticamente. Agregar fontes adicionais seria possível, mas o conteúdo não mais seria dissociado da ética.


REFERÊNCIAS

ABRAMO, Claudio. IN: A Regra do Jogo – Editora: Companhia das Letras (1988).
BUCCI, Eugenio. IN: Sobre Ética e Imprensa – Editora: Companhia das Letras (2000).
A Montanha dos Sete Abutres/Ace in the Hole (1951) - Direção e roteiro de Billy Wilder.

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