Saudosas meninices
Na pequena Curvelo dos anos 1970 e 1980, quando o tempo era mais lento e as vidas eram menos atribuladas, eu era um menino de pés descalços e cabeça cheia de ideias. Cada dia era dia de descobertas felizes em casa e nas ruas, com brinquedos brotando do improviso e da farta imaginação.
Não havia limites para a fantasia: tudo ao redor podia virar qualquer coisa – e virava mesmo. A máquina de costura da minha mãe, com roda grande e barulhenta, se transformava em carro de corrida. Bastava girar o volante de ferro com as mãos para fazer curva na pista inventada da sala.
E o chuveirinho do banheiro? Era meu microfone de superstar — e como a acústica do box ajudava! Cada banho era um show. Também molhado ficava no tanque de lavar roupa, gelado e fundo, imerso na imaginária banheira cinza de um hotel cinco estrelas, onde me refrescava e esquecia do mundo.
Já o moedor de carne, com seu jeito assustador, assumia facilmente o posto de tiranossauro-rex, sempre à espreita no balcão da cozinha. Manguinhas verdes, por sua vez, se tornavam pecinhas de Lego, encaixadas com palitos. E bastava cair uma folha de palmeira no chão para ganhar cavalinho de pau.
As vagens secas de flamboyant compunham a encenação como espadas de samurais. Nessa viagem mental, as nuvens eram massinhas de modelar no céu: dragões, rostos e castelos feitos só com os olhos. E, após a chuva, a correnteza acolhia folhas secas como barquinhos em perigosas corredeiras.
As caixas de papelão, quando grandes, davam luxuosas casinhas. Cabíamos lá dentro com nossos sonhos. As lentes grossas dos óculos dos tios e as de lupa eram nossos lasers secretos, para desenhar em papeis com a luz do sol. Com meias, bolávamos bola. Com bexigas, fazíamos bombas de água. Chuá!
O que mais? Chinelos convertidos em luvas de goleiro na pelada. Tampinhas de garrafa valiam muito no nosso mercado paralelo. Até ampolas de injeção vazias serviam de garrafinhas para os bonecos. E folhas de jornal não tinham descanso: acabam como chapéus de soldado. Marcha, cabeça de papel!
Botões de roupa se tornavam peças de partidas de futebol sem juiz. No auge da ousadia, a gente pegava o carrinho de mão do pedreiro e saía por aí, revezando a pilotagem desse “triciclo”. Éramos reis do universo feito de meninices e alegrias. Não precisávamos de muito, só de liberdade. Fim?
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