Conexões russas de Curvelo
Entre essas pontes simbólicas, destaca-se a figura do escritor curvelano Lúcio Cardoso, reverenciado como o “Dostoiévski brasileiro”. Admirador confesso dos grandes mestres russos, como Dostoievski e Tolstói, ele não apenas leu e refletiu sobre suas obras — como registra em seus Diários —, mas chegou a traduzir Ana Karênina, de Tolstói, em 1943.
A obra-prima de Cardoso, Crônica da Casa Assassinada, foi laureada recentemente nos Estados Unidos com o Best Translated Book Award (BTBA), na categoria ficção. O legado de Lúcio representa talvez o exemplo mais fulgurante dessa afinidade curvelana com o espírito russo.
Outro autor curvelano, Marcos de Lemos, homenageou diretamente a literatura russa ao intitular um de seus romances como Pável e Fyódor, evocando a sonoridade e a atmosfera de São Petersburgo, mesmo sem jamais ter visitado o país. Uma escolha guiada pela admiração e pelo fascínio cultural que os nomes russos exercem.
A ligação entre Curvelo e a Rússia vai além das letras. No distrito de Tomás Gonzaga, berço histórico do município, revela-se um elo inesperado: Aleksandr Púshkin, o poeta nacional da Rússia, traduziu para o russo a Lira IX do livro Marília de Dirceu, do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, patrono do distrito.
Segundo estudiosos, Púshkin teria conhecido a obra por meio da edição francesa publicada em Paris em 1825. Mais do que uma tradução, tratava-se do reconhecimento poético entre dois espíritos rebeldes, ambos exilados e apaixonados.
Durante os anos 1980, quando Mikhail Gorbachev lançava a política de abertura política e reestruturação econômica na União Soviética, a juventude curvelana abraçou a Perestroika, batizando com este nome uma das equipes da gincana promovida pela Rádio Vereda FM.
No campo da moda, destaca-se a amizade da estilista curvelana Zuzu Angel com a modelo russa-alemã Elke Maravilha. O encontro dessas duas mulheres — uma de Curvelo, outra da Rússia — é um marco de coragem e empatia internacional.
Também a educação curvelana bebeu das fontes russas. A pensadora Helena Antipoff, pioneira no estudo das crianças com deficiência, influenciou gerações de professores locais. Seu nome batizou por anos uma escola no Distrito JK, refletindo o alcance de sua obra humanista, nascida na Rússia e florescida em Minas.
A Rússia também foi motivo de mal-entendido político na Curvelo da ditadura. O folclórico vereador Bacalhau, preso em 1964 sob suspeita de comunismo, teve de explicar ao capitão local quem era Lenin. Sua resposta, sincera e desarmante — “acho que é ponta-direita da seleção russa” —, virou anedota e o livrou de problemas maiores. Um episódio registrado com humor e veracidade no livro Plenário à Moda Antiga, de Geraldo Elísio.
Já nos salões da dança clássica, o jovem curvelano Pedro Diniz Napoleão levou o seu talento à maior escola de balé do mundo, o Teatro Bolshoi, fundado em Moscou. Ingressou na filial brasileira, em Joinville (SC), após treinar em segredo, movido pela vocação. Hoje, representa com brilho a tradição russa no balé, trazendo consigo o nome de Curvelo às luzes da ribalta internacional.
Por fim, no auge da Guerra Fria, o presidente da Associação Comercial e Industrial de Curvelo, Dr. Geraldo Vianna Espeschit, ousou enviar uma moção de aplausos à Academia de Ciências de Moscou pelo lançamento do satélite Sputnik, em 1957.
Acusado de simpatia comunista, Espeschit se defendeu dizendo: “um feito científico não tem fronteiras ideológicas”. A declaração ganhou as páginas do jornal Estado de Minas e Curvelo entrou para os anais da Guerra Fria com um gesto de respeito à ciência — russa, sim, mas acima de tudo, universal.
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