O alfa e o ômega

Quando se é pequeno, coisas banais podem se tornar grandes e mágicas. Para o observador infantil, detalhes simples do cotidiano podem ganhar significado especial, legando ao adulto que ele vai virar um acervo místico. Relembrando os meus tempos de menino na minha pequena, sertaneja e empoeirada Curvelo (MG), lá pelos anos 1970 e 1980, consigo montar um álbum de figurinhas com elementos passados que sempre estarão presentes em minha memória afetiva, compartilhada pelos conterrâneos, sobretudo os companheiros de época.

Quem aí se lembra da gigantesca caixa de marimbondos da chaminé da fábrica de óleo, onde hoje está o supermercado Cordeiro? Aquela visão, que hoje causaria medo e preocupação, na época era apenas mais um aspecto curioso. Gosto também de recordar da combinação das letras gregas alfa e ômega no altar da matriz de Santo Antônio, fazendo referência ao trecho bíblico: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim” (Apocalipse 22:13). Aquela inscrição, tão cheia de sabedoria, nos trazia um enigma de eternidade e de presença divina nas nossas vidas.

Tem também a escultura em tamanho real de uma harpa no alto da entrada da casa amarela onde funcionava um grupo de seresta. Parecia tocar notas ao vento, levando melodias que só os corações mais pacientes conseguiam ouvir. Mais intrigante era o biombo de tiras de vime trançado a esconder o anotador do jogo do bicho. Aquilo era parte do folclore urbano e da diversão popular. As pedras em forma de caixinhas da calçada portuguesa da majestosa Praça Benedito Valadares ainda amparam as minhas caminhadas em sonhos. Deste local ainda tínhamos o emblemático caldeirão preto em cima do pedestal, sempre evocando histórias de bruxas imaginadas pela garotada arteira.

A rampa do prédio da Casa Levindo a nos levar até o consultório dentário ainda está lá, dentro e fora de nossa divertida mente. Cada passo subido era uma pequena vitória sobre o medo do dentista, e cada consulta, uma nova história a ser contada aos parentes quando chegasse em casa. E o que dizer da bela rosácea da igreja da Praça Santa Rita ou do pórtico para o parque de diversões na festa de São Geraldo, onde andávamos de bate-bate e comíamos maçã do amor? Aqueles momentos de pura alegria e inocência ainda aquecem a alma nos dias mais nostálgicos.

Os signos curvelanos alcançam o marco geodésico ao lado da Igreja do Tibira, orgulho de nossa condição única de centro geográfico de Minas Gerais. Uma marca que, para nós, significava estar no centro do mundo. As mesinhas de jogo de damas dos taxistas do ponto detrás da matriz e os carrinhos de pipoca e amendoim caramelizado na entrada do Cine Virginia também seguem estacionados nos pensamentos mais saudosistas. Outras dezenas de objetos, equipamentos e demais presenças da paisagem social curvelana continuam respondendo a minha chamada: "presente".

Podia citar o letreiro falhado do Edifício Virgínia, a icônica placa em neon da Casa Luciano, o extinto totem de anúncios classificados, a arquibancada e a murada em torno da piscina da Praça de Esportes e a caixa d'água ao lado do seu ginásio coberto. Isso tudo sem falar dos bustos de esculturas de vultos ilustres da municipalidade, como Monsenhor Rolim e outros, e até dos modernosos ícones das vias com paralelepípedos do Bairro Maria Amália.

Para mim, a minha rua, a Sete de Setembro, dentre outras tantas, ainda é feita de pedras grandes azuladas e pontudas. Quantas entradas de casas tinham com uma barra de ferro para tirar o barro dos sapatos! Óbvio que ainda temos o São Geraldo morto dentro do caixão de vidro no Santuário, igual ao da Branca de Neve, e os currais brancos e azuis do parque de exposições com suas pilastras a formar arcos. Ah, e os trilhos da velha ferrovia que lá não estão mais, fazendo encruzilhadas na área central. Cada árvore fícus e suas folhas de verso esbranquiçado, cada cachorro-quente do Claudinho, cada garrafa de licor Cristal Brasil ou cada caneco de porcelana de festivais de cerveja.

Temos um museu vivo de itens variados dentro de nós. Cada canto de Curvelo guarda uma história, um signo, uma lembrança que, juntos, formam a galeria nostálgica de nossas vidas. Não tem inteligência artificial que recrie um universo tão rico e tão querido. Não tem distância ou tempo que a apague.

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