O nó górdio do cadarço
Sílvio Ribas
As tardes de verão na minha pequena Curvelo,
no sertão mineiro, eram um caloroso convite para a garotada bater bola em
becos, quintais e terrenos baldios. Naqueles longínquos anos 1970 e 1980, saíamos
apressados de casa ou da escola para ocupar cada um desses espaços, sempre embalados
por uma energia inesgotável e com os pés revestidos com os nossos indefectíveis
Kichutes.
A peça comum do traje dos atletas
informais não era bem um tênis e muito menos uma chuteira. Na verdade, era o
híbrido desses dois tipos de calçado esportivo, combinados em um caprichoso
dois-em-um que podia ser usado tanto no ambiente escolar quanto nas muitas
peladas cidade afora. O modelo feito de lona e borracha pela Alpargatas era de
longe o mais popular, um objeto de desejo unânime dos garotos.
Com travas emborrachadas, o modelo
vendido na televisão pelo garoto-propaganda Zico era versátil e muito mais
barato que o calçado oficial do futebol de campo e logo se tornou uma mania entre
os meninos. A opção mais lógica de sapato descolado e que hoje desperta paixões
de colecionadores vintage também inspirou uma linha de bolas.
Com uma economia nacional fechada aos
importados e uma indústria local sem muitas opções de prateleira a oferecer, o
Kichute que trançava nossas pernas integrava uma geração formada ainda por
outros poucos personagens, como o tênis Montreal, imortalizado pela voz do
Lombardi, locutor do programa Domingo no Parque, de Silvio Santos.
Era também daquela época a Conga, um
tênis basicão, confortável e ideal para o uniforme escolar, inclusive o de
educação física. Esse panteão de pisantes nunca deixava nossos pés e nunca
deixará nossa memória.
Mas, ao contrário do par de legítimas
sandálias Havaianas, que, rezava a publicidade, “não deforma, não tem cheiro e
não solta as tiras”, o valente Kichute sofria algumas avarias em combate. Um
rasgadinho aqui e um desgaste ali não eram motivo de aborrecimento. Esses danos eram, sim, apenas honradas cicatrizes das batalhas diárias. De toda forma, duravam bem mais que
seus sucedâneos atuais a desfilar pelas ruas e shoppings centers.
O maior contratempo em usar o velho
Kichute era, na minha visão de criança, o terrível nó górdio que por vezes se
formava na amarração do longíssimo cadarço, particularmente depois de uma
partida de futebol na chuva e na lama. Era um desafio aos deuses do Olimpo.
A razão disso estava naquilo que, nos
dias de hoje, pareceria ser uma gambiarra – o hábito de se amarrar o cadarço na
canela e dar o laço duas vezes. Essa era a etiqueta básica do kichuteiro na
sala de aula, na quadra cimentada, no campinho de terra batida ou grama ou em
quaisquer aventuras que as pernas alcançassem.
Até hoje me lembro das marcas escuras deixadas
na superfície lisa e dura por seus cravos porosos. Uma cena não menos
nostálgica é a do exemplar do Kichute pendurado na fiação elétrica, lançado por
moleques seja por descarte travesso ou por trote contra o dono.
E desatar um enrosco na hora de tirar
o Kichute testava a nossa paciência ao máximo tempo, a ponto de acabar recorrendo
a um golpe de faca ou de tesoura. Era a solução efetiva e simples que estava
diante dos nossos olhos, mas que custava um novo par de compridas fitas pretas.
A inquietação estava no fato de que esperar
mais para vencer o imbróglio a encarcerar os tornozelos e os pés era a certeza
de frieira, de micose e de chulé ainda mais pronunciado. Como ousei botar
defeito em algo que nossos corações insistem dizer que era perfeito? Na próxima
encarnação, o Kichute teria cadarços lisos e impermeáveis? Não seria o mesmo.
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