A terra da poeira


Outrora chamada de "a terra da poeira”, Curvelo (MG) é lugar onde memórias ecoam no ar que nem canção antiga. Minha cidade natal ainda guarda encantos nostálgicos, quase místicos, dos tempos quando a passagem do automóvel "alevantava o poeirão" das suas ruas feitas de chão. Os versos da bela canção "O Galo Cantou na Serra", composta pelo curvelano Luiz Cláudio e cantada por ele (ou Nara Leão), invadem meu peito e o enchem de orgulho e saudade.

Quando fui morar em Belo Horizonte, no fim dos anos 1980, ouvi da dona da Pensão da Tia Nem, reduto dos conterrâneos na capital situado à Rua São Paulo: "seja bem-vindo a esta casa mais um filho da terra da poeira". A combinação de calor, secura e vias sem calçamento criava transtorno urbano, mas também inspirava artistas e nos ajudava a exibir um inusitado traço de pertencimento.

As partículas de solo que invadiam nossas casas, comércios, igrejas e demais recantos exigiam dos responsáveis pela limpeza em geral vigilância extra e absoluta diligência. Lembro do meu saudoso mestre Dídimo Paiva, legenda do jornalismo mineiro, compartilhando comigo a impressão maravilhada que teve ao adentar residências humildes de Curvelo, sempre impecavelmente limpas, apesar dos quintais largos e até dos pisos de terra batida.

A poeira se tornou uma parte inevitável da identidade da cidade. O hábito de salpicar água para “apagar a poeira” era ritual sagrado para alguns e a tarefa de manter ruas e casas higienizadas era hercúlea e constante. Outros se permitiam gastar mais com água da Copasa para deixar suas varandas e passeios limpos e frescos antes do anoitecer. Estes poderiam vencer o teste do correr de dedo indicador sobre superfícies lisas.

Os nossos calçados revelavam na poeira por onde passamos, das avenidas sem asfalto a vielas distantes e campo de várzea. Além disso, a poeira parecia querer nos abraçar como espírito da terra. As estradas rurais e suas brumas avermelhadas eram o ápice dessa experiência, engolindo veículos, cavalos, bois e viajantes. Na cidade, o interior da dobra das golas de camisas virava esconderijo de fujões de vassouras e paninhos. As moças nunca deixavam de levar na bolsa paninho de limpar sapato" ao sair de casa.

Também me lembro das faxinas no escritório de contabilidade de meu pai, em busca da sujeira escondida. A marquise do Edifício Virgínia, que servia como nosso camarote nos desfiles de Sete de Setembro, acumulava dunas de poeira. Mais marcante do que isso só o "colar" tatuado no pescoço com suor e o habitual pó ambiental do sertão.

Essa relação sempre prosaica com as camadas finas de território também me trouxe aflições. A poeira quase me cegou quando certo dia virei a esquina da Sete de Setembro em direção à Praça Santa Rita e um vento forte “alevantou o poeirão”, transformando minhas lentes de contato em discos cortantes. Mesmo assim, era mágico testemunhar o balé dos redemoinhos, a dar vida às lendas de seres malignos sob o sol abrasador.

Mais divertido é lembrar do folclore político. Um senador curvelano foi perguntado por repórteres ao chegar à sede do parlamento, ainda no Rio de Janeiro, como ele resolveria o problema da "poeira de Curvelo", que geralmente era respondido com pavimentação das vias. Respondeu dizendo que já estava fazendo a sua parte, trocando seus ternos brancos pelos de linho bege.

Hoje, em tempos modernos, Curvelo é cidade arborizada e urbanizada, mas a sua terra “vaporizada” ainda paira sobre as nossas mentes como neblinas de passado bom, um lembrete nostálgico e místico da “cidade da poeira” que moldou a nossa identidade e enriqueceu as nossas vidas.

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