A poeirenta via láctea do sertão
Enquanto a jornada transcorria, atravessando paisagens remotas do sertão profundo, me via como nômade tuaregue sentado na carroceria coberta do antigo caminhão leiteiro. Com corpo e roupa tingidos de ocre pela espessa poeira que me envolvia, evocava o povo guerreiro do norte africano. Boca e nariz cobertos por panos, tal qual viajantes que, há séculos, desbravam as dunas do deserto do Saara em caravanas de camelos, eu fazia naquele início dos anos 1980 o nostálgico e intermitente trajeto de Curvelo até a porteira da fazenda do meu avô paterno, Walmiro, na simpática Monjolos.
A peculiaridade daquela aventura cabocla começava com a tampa
do latão de leite, rígido círculo com trave transversal que servia de assento.
De igual maneira improvisada, cordas faziam as vezes de barras de apoio usadas
por passageiros de ônibus. A mercearia do Xavante, no Beco da Pensão Horta, era,
por sua vez, a rodoviária dessa viação informal com linhas regulares para
fazendas e sítios fornecedores de leite fresco à espera de ser recolhido. O ponto
final era a cooperativa ou alguma fábrica de laticínios.
Além da rusticidade daquele transporte de gente e de cargas, a
essência de nossa jornada rural por poeirenta trilha estava nos companheiros
de viagem. A maioria dos integrantes da diligência caipira era composta por
trabalhadores rurais, cujas vozes ecoavam como agitada rede social que
sequer tinha acesso à luz elétrica. Entre eles, havia mulheres carentes de
consultas médicas, comerciantes de fumo e cachaça e pessoas em busca de
notícias de parentes em lugares ainda mais distantes. Não me esqueço do idoso de
cabelo preto e bigodinho que parecia a caricatura de Clark Gable.
Nessa atmosfera comunitária, histórias se entrelaçavam, olhares
curiosos brotavam e sorrisos marotos eram cobertos por mão calejada pela enxada.
Cada passageiro trazia consigo biografias esquecidas nos grotões, marcadas
pelas agruras e alegrias da vida simples e dura do campo. Ver e ouvir aquilo me
fazia sentir como João Guimarães Rosa na pesquisa diligente do escritor de
linguajares, crenças e sonhos de indivíduos próximos no território, mas distantes
das páginas acadêmicas e da convivência urbana.
Em meio a essas conversas típicas da roça, contemplava cenários
evoluindo sob sol ardente e sobre estrada de terra rachada, esburacada e
perigosa. Avistava matas, pastos com gado magro, córregos estreitos e névoas prontas
para cegar temporariamente. Cada parada do longo caminho trazia consigo nova
pitada de cor ou pontada de dor, permitindo a embarcados reabastecerem-se de causos
e contradições humanas. À cada curva, no sacolejo em cima do elo perdido entre arcaicas
jardineiras e modernos veículos off-road, colhia cenas de eras e lugares tombados na beira do caminho.
Ainda lembro vividamente do leiteiro que percorria nossa rua,
anunciando sua chegada com o som característico do bastão metálico batendo no
latão. Às vezes, gritava “Ó o leite!”. As donas de casa e seus filhos corriam
com vasilhas para comprar o precioso líquido. Com maestria adquirida ao longo
dos anos, o leiteiro destampava o recipiente icônico e, com o medidor, retirava
um litro por vez, sem derramar uma gota. Leite gordo, repleto de nata, que
podia virar manteiga caseira ou coalhada. Poeirenta e espumosa, essa via láctea
do sertão deixa saudades e nunca será esquecida.
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