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Meu laboratório de quintal

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Sílvio Ribas As maiores empresas do mundo de hoje nasceram em garagens apertadas, dormitórios estudantis desorganizados e laboratórios universitários de fundos de corredor. Essas gigantes tecnológicas deram os primeiros passos de forma improvisada, guiadas só pelo sonho de jovens empreendedores.  Bem antes dessas histórias de sucesso global, havia também pequenos universos de invenção, onde a imaginação infantil transformava qualquer canto num centro de descobertas. O meu ficava no barracão do quintal de casa, lá na pequena Curvelo (MG) daqueles distantes anos 1970 e 1980. Entre latas de tinta vazias, ferramentas encostadas e cheiro de terra molhada, ali montei “o laboratório”. Sozinho ou com amigos, passava tardes absorto em experiências que misturavam curiosidade e boa dose de improviso. O início dessa aventura foi o kit “Jovem Cientista”, da Estrela. Esse foi o presente inesquecível que ganhei de Natal da querida Cybelle Torres, minha prima engenheira química com carreira na Usi...

Autoridades leves e doces

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Sílvio Ribas Recordo com ternura os meus dias de menino em Curvelo (MG), época em que o respeito e a solenidade permeavam muitos instantes da vida cotidiana, marcados pela presença de autoridades cujos poderes – reais ou meramente simbólicos – se desdobravam em cenas quase ritualísticas.  Naquele universo dos anos 1970 e início dos 1980, os mestres de cerimônia e chefes de trabalhos, com vocábulos pomposos, anunciavam sempre as “autoridades civis, militares e eclesiásticas”, imbuindo os eventos de uma atmosfera de formalidade quase sacra. Admirava ver aquilo tudo. Todavia, o encanto da minha infância residia também no elenco paralelo de personagens, dotados de títulos exuberantes para funções que, embora revestidas de alguma pompa, tinham leveza e doçura próprias. Não eram donos de poder temível, mas protagonistas folclóricos e carismático. Havia generais das bandas, presentes em festas populares e coretos, conduzindo desfiles com graça. Eles eram a personificação da música e da ce...

A diplomacia do fino licor

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Sílvio Ribas Desde que deixei Curvelo (MG) para desbravar o mundo, levo como cartão de visitas um verdadeiro emblema de nossa terra: o fino e renomado licor de pequi. Foi com o inesquecível prefeito Paulo Dayrell que aprendi o gesto diplomático de presentear amigos e colegas de trabalho com o Cristal Brasil – um ato capaz de aproximar corações, abrir portas e iluminar sorrisos, enquanto exalta nossas raízes a cada brinde. Oferecer algo genuíno de nossa cultura é a essência da hospitalidade mineira. E, com o Cristal Brasil, alcançamos um degrau mais alto: encantar os cinco sentidos. Do aroma doce, que lembra a “bala delícia”, como descreveu com carinho uma amiga paulistana, ao tilintar das tacinhas em encontros profissionais e familiares, cada golinho sela amizades e nos faz viajar às origens. Durante anos, autoridades e empresários de Curvelo escolheram essas garrafas sinuosas – que, para mim, remetem à icônica Jeannie dos velhos tempos da TV – como souvenir oficial, um mimo para nobre...

Os muros que nos juntam

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Sílvio Ribas Na minha Curvelo (MG) dos temp os de menino, lá entre os anos de 1970 e 1980, quilômetros de muros pré-moldados de concreto se espalhavam por toda a cidade, como guardiões simplórios de propriedades e famílias.  Presentes em lotes vagos, quintais e depósitos a céu aberto, eles não faziam só barreiras físicas. Suas placas e colunas encaixadas também abraçavam ideias, simbolizavam nosso meio urbano e transmitiam avisos ao povo. Cada um com sua tez acinzentada ou caiada, os muros de cimento armado pareciam ignorar divisões sociais. Junto com as cercas de arame farpado, eles delimitavam áreas, mas também atraíam olhares e corações das ruas. Num arroubo de bairrismo, minha nostalgia pinta aqueles muros de Curvelo como nossos representantes no grupo de edificações icônicas – a Muralha da China, o Muro de Berlim e o que margeia a Wall Street, em Nova York.  Na minha opinião, eles presenteavam Curvelo com uma carga simbólica equivalente à do calçamento pé-de-moleque em Ou...

O azul daqueles olhos

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Sílvio Ribas Oswaldo jamais esqueceu aquele encontro. No início de noite na fazenda, pouco depois de levantar-se da velha poltrona para matar a pequena aranha que adentrava a sala pelo chão de tábuas compridas, o brilho de duas fileiras com quatro pares de olhos dela mudou o destino de ambos. O que era aversão transformou-se em fascínio. O azul-cobalto que cintilava nas minúsculas esferas o fez parar e se agachar, como que capturado por um feitiço. A mente de Oswaldo retornou à Terra, após breves segundos em que flutuou no extraordinário sob os sons noturnos do sertão.  Lembrou-se de Riobaldo e suas interrogações sobre os mistérios do semblante de Diadorim. O que havia naquele aracnídeo que o deixava tão hipnotizado? Como o canto longínquo de uma sereia ou a mirada fulminante de Medusa, aquele avistamento breve legou-lhe uma recordação eterna. A aranha recuou lentamente, deslizando-se de volta à varanda, até sumir na escuridão. A partir de então, Oswaldo sentiu o veneno de uma nost...

1987: O som das manhãs de sábado

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Sílvio Ribas   No fim de 1987, após concluir as últimas provas do ensino médio no colégio, deixei minha cidade natal, Curvelo (MG), rumo a Belo Horizonte para prestar vestibulares para Jornalismo na UFMG e na PUC-MG. Além de minhas próprias apostilas, acompanhava aulas avulsas do cursinho pré-vestibular Pitágoras. Era um tempo especial, de encarar o crivo para uma nova etapa.  Fui morar em uma velha e simples república de estuantes, conhecida como Pensão da Tia Nem, localizada no centro da cidade, na Rua São Paulo, que abrigava dezenas de rapazes vindos do interior, na época concentrada nos vindos de Curvelo, Almenara e Ponte Nova. Os sábados naquela pensão tinham uma rotina peculiar. Eram dias dedicados à faxina, e ninguém podia ficar deitado por muito tempo. Mas, depois de arrumar as camas beliche e trocar de roupa, havia um momento de pausa em que podíamos nos deitar novamente, ouvindo o radinho de pilha a tocar os sucessos da época, quase sempre sintonizado na BH FM. Essa...

Rimas e sinas do Curvelo

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  Sílvio Ribas "Prazer em revê-lo em Curvelo." A frase, dita com leveza pelo amigo Léo Cunha quando o recepcionei na minha terra natal, em um longínquo dia de 1991, carregava tanto uma missão quanto um prazer da rima. O escritor guardou-a zelosamente por anos, à espera do encontro de lugar e ocasião certos para resgatá-la. Naquela cidade quente e poeirenta do sertão mineiro, que me viu nascer e amadurecer, suas palavras transformaram-se, naquele instante, não apenas em destino, mas também numa suave melodia para os meus orgulhosos ouvidos. Ao longo dessas décadas, passei a testar novas rimas e sinas a partir do peculiar nome do meu município: desvelo, cotovelo, novelo, demovê-lo... Era como se cada vernáculo usado revelasse algo mágico emergido na confusão do cotidiano. Até marcas de produtos ou estabelecimentos comerciais evocavam elos com o "vêlo". Forçando um pouquinho, até a aguardente José Cuervo, o magazine Riachuelo e a sapataria Corello, criavam para mim fal...