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A urgência de viver

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Sílvio Ribas A consciência da finitude é talvez o ponto de partida mais radical e, ao mesmo tempo, mais libertador da filosofia. Desde o nascimento, cada ser humano carrega uma expectativa íntima: viver o máximo possível, de preferência com saúde, dignidade e em uma velhice serena. No entanto, a única certeza implacável é a de que a vida, mais cedo ou mais tarde, encontrará seu fim. Esse contraste entre desejo e inevitabilidade é o que molda a nossa condição existencial. Os filósofos estoicos ensinaram que a morte não é inimiga, m as conselheira silenciosa. Longe de ser causa de paralisia ou medo, o reconhecimento da finitude é estímulo para o essencial. A cada instante, a lembrança de que somos passageiros nos liberta das distrações banais e nos convoca a viver com intensidade. O tempo, percebido como limitado, deixa de ser desperdiçável e se torna sagrado. É nesse ponto que a finitude se converte em urgência. Urgência de amar sem reservas, de cultivar amizades genuínas, de realizar p...

Volta ao pátio da escola

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  Dizem que não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes, sobretudo depois de muito tempo afastados dele. O risco da decepção é grande: paredes reformadas, espaços reinventados, pessoas ausentes. Melhor, então, deixar guardado o velho encantamento intacto, como quem conserva um relicário. Ainda assim, resolvi revisitar um desses recantos. Não fisicamente, mas pelas janelas das redes sociais, onde surgem fotos antigas e recentes. Ao ver as imagens, a memória fez chamada em voz alta, presenteando-me com a vibração de décadas passadas, quando a campainha soava para o recreio. O pátio da Escola Interventor Alcides Lins era o oásis pulsante dos nossos dias de estudante de primeiro grau. Nele, filas se formavam para entrar e sair, mas era sobretudo o palco da liberdade que tínhamos naquele nosso segundo lar na Curvelo (MG) quente e poeirenta dos anos 1970 e 1980. Cada apelido, cada jeito de andar, cada risada alta era uma marca registrada da garotada. E naquele grande tablado de ...

Resistência fashion

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Na Curvelo (MG) onde nasci e morei, nas décadas de 1970 e 1980, o jeito do povo se vestir nem sempre era ditado por vitrines chiques ou revistas de moda, mas pelo cotidiano de uma gente trabalhadora, em boa parte de origem rural. Era um tempo em que aparência rimava com necessidade, sem deixar de exibir dignidade. As senhoras de menor renda usavam lenços cobrindo a cabeça, vestidos de tecido básico e sandálias de borracha ou couro. Muitas iam às feiras e às igrejas com mãos calejadas carregando sacolas de pano ou cestas de palha. Havia na vaidade delas o estilo sertanejo raiz, marcado por praticidade e austeridade. Os homens circulavam com camisas de botão de manga curta, calças de corte reto e cintos baratos. Alguns exibiam chapéu de feltro, outros se adaptavam aos bonés que já começavam a se popularizar. Para caminhar por ruas, becos e avenidas de pedra ou terra, o calçado podia ser sapato gasto ou chinelo ou mesmo nenhum. Jovens e adultos se deslocavam de bicicleta, com a barra ...

A humanidade dos cães

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Sílvio Ribas  É um paradoxo. Se o melhor amigo do homem pudesse falar, talvez dissesse: “esses humanos são desumanos”. Foram os cães a primeira espécie animal lançada ao espaço e, muito provavelmente, serão também os únicos, além dos próprios homo sapiens , a seguir com eles rumo às estrelas, quando a saída da Terra estiver aberta em busca de novos lares no Cosmo. Enquanto isso não acontece, nossa convivência diária com esses seres terrestres de quatro patas deveria ser um atestado do que nos falta para sermos mais nobres, como a maioria deles é. A fidelidade canina é quase impossível de replicar entre nós. O carinho, a atenção e a tolerância da maioria das raças para conosco são tão cativantes que deveriam servir de modelo, sobretudo no trato com os mais frágeis — crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência. Confesso que só despertei para a companhia e a interação com os cachorros já na vida adulta, apresentado a eles por minha companheira e cultivado em família. Toby, ...

Um idioma mineiro

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Sílvio Ribas Eleito o sotaque mais bonito do Brasil, o jeito mineiro de falar guarda mais do que uma sonoridade simpática: é um patrimônio afetivo e cultural. O mineirês se revela em gírias, neologismos e significados próprios para palavras comuns, transformando o português falado em Minas Gerais em um território linguístico único. “Arredar” não é só verbo de dicionário, mas ato cotidiano; “trem” pode ser qualquer coisa, de uma xícara a um problema; e “uai”, interjeição identitária, é senha de pertencimento. Esse dialeto, que nasceu da mistura entre o português europeu, os falares africanos e indígenas e o isolamento geográfico de várias regiões, preserva arcaísmos que sumiram em outras partes do Brasil. Verbos como “assuntar” (prestar atenção) e “despautério” (desatino) ainda circulam em conversas ou aparecem em textos literários. Ao mesmo tempo, surgem pérolas modernas, como o uso criativo de “agarrado” para designar alguém ocupado ou enrolado. Com a força das redes sociais, o mi...

O papel roxo da maçã

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Na minha sertaneja Curvelo (MG) dos distantes anos 1970 e 1980, cada detalhe da vida cotidiana parecia querer contar algo superior, que merecia ser notado e louvado. Por isso, a chegada de algo novo na cidade virava logo um acontecimento para a nossa gente. As maçãs argentinas, por exemplo, vinham do importador de Belo Horizonte como pequenos tesouros embalados no mistério de um mundo bem mais vasto e elegante do que o nosso atual. O aroma doce que se desprendia delas anunciava prazer reservado às ocasiões especiais. A sensação de fresca novidade que pousava na geladeira ou na cesta da cozinha, antes mesmo de as frutas serem desembrulhadas, não perecem na memória. Essas maçãs eram diferentes de tudo que se colhia nos quintais e sítios. Brilhavam como se polidas à mão, cada uma cuidadosamente protegida pelo sublime papel de seda roxo. Para nós, crianças, o invólucro parecia manto de nobreza e a cor da paixão. Por isso, tinha algo quase cerimonial em descobri-las — um gesto lento, ...

A magia da fonte luminosa de Curvelo

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 Sílvio Ribas Por muitos anos, as noites de domingo em Curvelo (MG) presenteavam os moradores com um espetáculo encantador. Na Praça Benedito Valadares, a fonte luminosa transformava água, luz e música em ritual coletivo e poético. Crianças maravilhadas, casais apaixonados e famílias inteiras se punham ao redor do balé de jatos coloridos, embalados por trilhas sonoras também inesquecíveis. Todos éramos testemunhas da tecnologia à serviço da beleza. Cercada por 16 colunas inclinadas de pedra bruta — que, diziam, evocar doces pé-de-moleque —, a fonte pulsava vida e harmonia. Essa mandala era observada por uma majestosa coluna coríntia em pedra polida. Toda vez que vejo fontes luminosas em outras partes do mundo, é inevitável relembrar da nossa. Os jatos altos e reluzentes dançando ao som da música — tudo me remete à magia que brotava na área central da minha cidade. Naqueles longínquos anos 1970 e 1980, a fonte luminosa de Curvelo era mais que um suntuoso equipamento urbano...