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Geraldo & Antônio, uma dupla santa

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Sílvio Ribas Falar de Curvelo (MG) é, inevitavelmente, evocar São Geraldo. O santo, tão ligado à cidade, empresta seu nome à majestosa basílica dela, à fé de milhares de devotos e ao fluxo incessante de romeiros vindos de todos os cantos do Brasil — e até do exterior. A presença de São Geraldo está entranhada na cultura e na alma dos curvelanos, muitos dos quais batizados de Geraldo ou Geralda, como bênção familiar. Mas há um curioso detalhe que nutre o mistério espiritual de Curvelo: o padroeiro oficial do município é outro santo, o português Santo Antônio, igualmente milagreiro, cujo nome era também o do padre Corvello, fundador da cidade e devoto fervoroso do franciscano lisboeta. Assim, a cidade tem por protetores dois santos que, embora distintos, parecem dividir o mesmo altar da devoção popular — uma dupla celestial que rende episódios saborosos. Não foram poucos os visitantes ilustres que se confundiram com essa duplicidade. Recordo o então presidenciável Geraldo Alckmin, em 200...

1980s, a década prometida

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Os anos 1980 acabaram há 35 anos, mas continuam vivos em corações e algoritmos. Para quem os viveu, como eu, a lembrança vem com um brilho de orgulho. Era o tempo do inédito, da ousadia, da trilha sonora inesquecível. O curioso é ver adolescentes de hoje, como o meu filho, que nunca giraram uma fita cassete, se encantarem por sintetizadores, jaquetas coloridas e cabelos armados como se descobrissem um tesouro. Talvez seja a prova de que aquela década foi mesmo especial — uma era de autenticidade e de rebeldia criativa que falta ao presente. Em tempos de telas frias e comportamentos pasteurizados, os eighties seguem reluzindo como um refúgio vibrante. A internet virou o novo túnel do tempo, onde os nostálgicos e os curiosos mineram clipes, filmes e estilos, reconstruindo o passado com filtros e pixels. E agora, com a ajuda da inteligência artificial (IA), esse revival ganha contornos quase mágicos: cenários recriados, personagens renascidos, convites digitais para viagens “de volta ...

A sabedoria do velho digitador

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Sílvio Ribas Saquei nova metáfora para uma lição de vida me dada pelo meu mestre João Camilo Penna, que ele ilustrou com a figura do velho tropeiro que equilibra lembrança e esperança em dois alforjes dispostos cada um de um lado, enquanto faz a viagem da vida no lombo do burro. O segredo é sempre tirar recordações pesadas de um e repor aspirações no outro. A analogia modernizada que proponho é do velho digitador, sentado dia nte de uma mesa de trabalho. No centro dela, repousa o PC, computador pessoal — ferramenta e espelho da mente. À esquerda, a fragmentadora, para desintegrar os rancores acumulados. E à direita, a impressora, sempre pronta a materializar novos e ousados projetos. Esse arranjo seria a nova viagem do viajante da era digital. O balanço do cavaleiro de outrora se traduziria agora na harmonia do operador do teclado. À esquerda, o depósito do que deve ser triturado e esquecido: dores, frustrações e culpas que pesam na consciência. À direita, as esperanças impressas, ...

Nossas samambaias choronas

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  A jardinagem nunca me seduziu, mas o passar das décadas tratou de colorir minha memória afetiva com o seu verde mais íntimo, plantado lá na infância. Hoje, ao relembrar de casas e quintais do meu Curvelo (MG), evoco plantas daqueles lentos 1970s e 1980s, que reinavam em cantinhos de frescor e ternura. Quando menino, a flora caseira era companheira constante. Minha família, como tantas da cidade, enfeitava salas e varandas com vasos de todos os tamanhos, onde flores e folhagens compunham cenários de acolhimento. Entre todas, sobressaíam as cascatas de folhas das samambaias choronas . Pendendo como lágrimas no cair das tardes, as choronas apreciavam a sombra e a umidade. Havia sempre mãos a lhes borrifar água, como quem acaricia um ser de estimação. Elas se multiplicavam em suportes de ferro e em xaxins , cujo nome engraçado jamais esqueci: uma senha da meninice. Eu via nesses aparadores metálicos esqueletos de robôs guardiões de uma ruína maia. Ao lado deles, havia ainda out...

Reflexões outonais

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  Sílvio Ribas No dia em que escrevo este texto, 11 de outubro de 2025, um sábado, constato ter vivido 20.387 dias — o equivalente a 489.288 horas, 29.357.280 minutos ou 1.761.436.800 segundos. Tantos instantes, somados e diluídos em quase 56 anos, compõem uma existência em plena curva de maturação, num ponto em que o tempo já não se mede só pelo que se vive, mas pelo que ainda se pode fazer valer. Ao dividir a vida em três etapas de aproximadamente 27 anos — número que, não por acaso, marcou a partida precoce de tantos ídolos — percebo-me adentrando o último terço da jornada. É o território dos “finalmentes”, como diria um poeta mineiro, mas ainda fértil para semear novos sonhos e projetos. O ideal teria sido colher em abundância o que se plantou nas fases anteriores, mas o outono, ainda que tardio, também é tempo de colheita. A diferença é que o fruto já vem acompanhado de reflexão e moderação, e o prazer de saboreá-lo se mistura à consciência de que as estações não são i...

A urgência de viver

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Sílvio Ribas A consciência da finitude é talvez o ponto de partida mais radical e, ao mesmo tempo, mais libertador da filosofia. Desde o nascimento, cada ser humano carrega uma expectativa íntima: viver o máximo possível, de preferência com saúde, dignidade e em uma velhice serena. No entanto, a única certeza implacável é a de que a vida, mais cedo ou mais tarde, encontrará seu fim. Esse contraste entre desejo e inevitabilidade é o que molda a nossa condição existencial. Os filósofos estoicos ensinaram que a morte não é inimiga, m as conselheira silenciosa. Longe de ser causa de paralisia ou medo, o reconhecimento da finitude é estímulo para o essencial. A cada instante, a lembrança de que somos passageiros nos liberta das distrações banais e nos convoca a viver com intensidade. O tempo, percebido como limitado, deixa de ser desperdiçável e se torna sagrado. É nesse ponto que a finitude se converte em urgência. Urgência de amar sem reservas, de cultivar amizades genuínas, de realizar p...

Volta ao pátio da escola

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  Dizem que não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes, sobretudo depois de muito tempo afastados dele. O risco da decepção é grande: paredes reformadas, espaços reinventados, pessoas ausentes. Melhor, então, deixar guardado o velho encantamento intacto, como quem conserva um relicário. Ainda assim, resolvi revisitar um desses recantos. Não fisicamente, mas pelas janelas das redes sociais, onde surgem fotos antigas e recentes. Ao ver as imagens, a memória fez chamada em voz alta, presenteando-me com a vibração de décadas passadas, quando a campainha soava para o recreio. O pátio da Escola Interventor Alcides Lins era o oásis pulsante dos nossos dias de estudante de primeiro grau. Nele, filas se formavam para entrar e sair, mas era sobretudo o palco da liberdade que tínhamos naquele nosso segundo lar na Curvelo (MG) quente e poeirenta dos anos 1970 e 1980. Cada apelido, cada jeito de andar, cada risada alta era uma marca registrada da garotada. E naquele grande tablado de ...