Postagens

Resistência fashion

Imagem
Na Curvelo (MG) onde nasci e morei, nas décadas de 1970 e 1980, o jeito do povo se vestir nem sempre era ditado por vitrines chiques ou revistas de moda, mas pelo cotidiano de uma gente trabalhadora, em boa parte de origem rural. Era um tempo em que aparência rimava com necessidade, sem deixar de exibir dignidade. As senhoras de menor renda usavam lenços cobrindo a cabeça, vestidos de tecido básico e sandálias de borracha ou couro. Muitas iam às feiras e às igrejas com mãos calejadas carregando sacolas de pano ou cestas de palha. Havia na vaidade delas o estilo sertanejo raiz, marcado por praticidade e austeridade. Os homens circulavam com camisas de botão de manga curta, calças de corte reto e cintos baratos. Alguns exibiam chapéu de feltro, outros se adaptavam aos bonés que já começavam a se popularizar. Para caminhar por ruas, becos e avenidas de pedra ou terra, o calçado podia ser sapato gasto ou chinelo ou mesmo nenhum. Jovens e adultos se deslocavam de bicicleta, com a barra ...

A humanidade dos cães

Imagem
Sílvio Ribas  É um paradoxo. Se o melhor amigo do homem pudesse falar, talvez dissesse: “esses humanos são desumanos”. Foram os cães a primeira espécie animal lançada ao espaço e, muito provavelmente, serão também os únicos, além dos próprios homo sapiens , a seguir com eles rumo às estrelas, quando a saída da Terra estiver aberta em busca de novos lares no Cosmo. Enquanto isso não acontece, nossa convivência diária com esses seres terrestres de quatro patas deveria ser um atestado do que nos falta para sermos mais nobres, como a maioria deles é. A fidelidade canina é quase impossível de replicar entre nós. O carinho, a atenção e a tolerância da maioria das raças para conosco são tão cativantes que deveriam servir de modelo, sobretudo no trato com os mais frágeis — crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência. Confesso que só despertei para a companhia e a interação com os cachorros já na vida adulta, apresentado a eles por minha companheira e cultivado em família. Toby, ...

Um idioma mineiro

Imagem
Sílvio Ribas Eleito o sotaque mais bonito do Brasil, o jeito mineiro de falar guarda mais do que uma sonoridade simpática: é um patrimônio afetivo e cultural. O mineirês se revela em gírias, neologismos e significados próprios para palavras comuns, transformando o português falado em Minas Gerais em um território linguístico único. “Arredar” não é só verbo de dicionário, mas ato cotidiano; “trem” pode ser qualquer coisa, de uma xícara a um problema; e “uai”, interjeição identitária, é senha de pertencimento. Esse dialeto, que nasceu da mistura entre o português europeu, os falares africanos e indígenas e o isolamento geográfico de várias regiões, preserva arcaísmos que sumiram em outras partes do Brasil. Verbos como “assuntar” (prestar atenção) e “despautério” (desatino) ainda circulam em conversas ou aparecem em textos literários. Ao mesmo tempo, surgem pérolas modernas, como o uso criativo de “agarrado” para designar alguém ocupado ou enrolado. Com a força das redes sociais, o mi...

O papel roxo da maçã

Imagem
Na minha sertaneja Curvelo (MG) dos distantes anos 1970 e 1980, cada detalhe da vida cotidiana parecia querer contar algo superior, que merecia ser notado e louvado. Por isso, a chegada de algo novo na cidade virava logo um acontecimento para a nossa gente. As maçãs argentinas, por exemplo, vinham do importador de Belo Horizonte como pequenos tesouros embalados no mistério de um mundo bem mais vasto e elegante do que o nosso atual. O aroma doce que se desprendia delas anunciava prazer reservado às ocasiões especiais. A sensação de fresca novidade que pousava na geladeira ou na cesta da cozinha, antes mesmo de as frutas serem desembrulhadas, não perecem na memória. Essas maçãs eram diferentes de tudo que se colhia nos quintais e sítios. Brilhavam como se polidas à mão, cada uma cuidadosamente protegida pelo sublime papel de seda roxo. Para nós, crianças, o invólucro parecia manto de nobreza e a cor da paixão. Por isso, tinha algo quase cerimonial em descobri-las — um gesto lento, ...

A magia da fonte luminosa de Curvelo

Imagem
 Sílvio Ribas Por muitos anos, as noites de domingo em Curvelo (MG) presenteavam os moradores com um espetáculo encantador. Na Praça Benedito Valadares, a fonte luminosa transformava água, luz e música em ritual coletivo e poético. Crianças maravilhadas, casais apaixonados e famílias inteiras se punham ao redor do balé de jatos coloridos, embalados por trilhas sonoras também inesquecíveis. Todos éramos testemunhas da tecnologia à serviço da beleza. Cercada por 16 colunas inclinadas de pedra bruta — que, diziam, evocar doces pé-de-moleque —, a fonte pulsava vida e harmonia. Essa mandala era observada por uma majestosa coluna coríntia em pedra polida. Toda vez que vejo fontes luminosas em outras partes do mundo, é inevitável relembrar da nossa. Os jatos altos e reluzentes dançando ao som da música — tudo me remete à magia que brotava na área central da minha cidade. Naqueles longínquos anos 1970 e 1980, a fonte luminosa de Curvelo era mais que um suntuoso equipamento urbano...

Orgulho geodésico

Imagem
  Sílvio Ribas   O mapa do tesouro da mineiridade marca um X no solo de Curvelo (MG). Por décadas, os filhos e amigos da cidade souberam para onde apontar quando falavam do “centro geodésico” do estado. Ao lado direito da entrada da Igreja da Imaculada Conceição, no bairro Tibira, havia um bloco de concreto que indicava um especial ponto de Minas Gerais estudado por geógrafos, agrimensores e cartógrafos. Aquele dado técnico era também patrimônio dos curvelanos, cultivado com fervor. A marca simples, que poucos olhos de fora notavam, estava bem guardada na memória daquela gente e a enchia de orgulho. O ponto de convergência do grande território mineiro virou reportagem na TV e publicidade da Prefeitura e do comércio local. Poética e oficialmente, o município adotou a alcunha de coração do estado. O tempo passou e o marco provisório deu lugar a um monumento mais elaborado, de traço moderno, dividido com o jardim lateral da igreja. Com arco e setas, o símbolo novo visav...

A vida não cabe num prompt

Imagem
Sílvio Ribas A última cena de Inteligência Artificial (Artificial Intelligence: AI,  2001), dirigido pelo genial Steven Spielberg, é uma daquelas que ficam conosco — não só pela beleza, mas pelo comichão existencial que produz. O mundo humano se extinguiu há milênios. Tudo o que restou foi um menino-robô, testemunha solitária da fragilidade e da grandeza do que fomos. À sua frente, uma forma avançada e alienígena de inteligência tenta compreender a espécie que desapareceu. Coube à IA  exalar aquilo que foi humanidade. Essa imagem ficcional nos remete à realidade do presente. Desde 2024, assistimos à expansão acelerada da IA no cotidiano com espantosa naturalidade. Abrimos as portas de nossas casas, corações e mentes às máquinas que aprendem, simulam e respondem com rapidez inquietante e cada vez mais precisão. Passamos a conviver com textos, imagens e vozes que não vêm de seres vivos, mas de comandos — prompts, como se convencionou chamar. E quando o mundo começa a ser de...