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O azul daqueles olhos

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Sílvio Ribas Oswaldo jamais esqueceu aquele encontro. No início de noite na fazenda, pouco depois de levantar-se da velha poltrona para matar a pequena aranha que adentrava a sala pelo chão de tábuas compridas, o brilho de duas fileiras com quatro pares de olhos dela mudou o destino de ambos. O que era aversão transformou-se em fascínio. O azul-cobalto que cintilava nas minúsculas esferas o fez parar e se agachar, como que capturado por um feitiço. A mente de Oswaldo retornou à Terra, após breves segundos em que flutuou no extraordinário sob os sons noturnos do sertão.  Lembrou-se de Riobaldo e suas interrogações sobre os mistérios do olhar de Diadorim. O que havia naquele aracnídeo que o deixava tão hipnotizado? Como o canto longínquo de uma sereia ou o olhar fulminante de Medusa, aquele avistamento breve legou-lhe uma recordação eterna. A aranha recuou lentamente, deslizando-se de volta à varanda, até sumir na escuridão. A partir de então, Oswaldo sentiu o veneno de uma nostalgia...

1987: O som das manhãs de sábado

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Sílvio Ribas   No fim de 1987, após concluir as últimas provas do ensino médio no colégio, deixei minha cidade natal, Curvelo (MG), rumo a Belo Horizonte para prestar vestibulares para Jornalismo na UFMG e na PUC-MG. Além de minhas próprias apostilas, acompanhava aulas avulsas do cursinho pré-vestibular Pitágoras. Era um tempo especial, de encarar o crivo para uma nova etapa.  Fui morar em uma velha e simples república de estuantes, conhecida como Pensão da Tia Nem, localizada no centro da cidade, na Rua São Paulo, que abrigava dezenas de rapazes vindos do interior, na época concentrada nos vindos de Curvelo, Almenara e Ponte Nova. Os sábados naquela pensão tinham uma rotina peculiar. Eram dias dedicados à faxina, e ninguém podia ficar deitado por muito tempo. Mas, depois de arrumar as camas beliche e trocar de roupa, havia um momento de pausa em que podíamos nos deitar novamente, ouvindo o radinho de pilha a tocar os sucessos da época, quase sempre sintonizado na BH FM. Essa...

Rimas e sinas do Curvelo

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  Sílvio Ribas "Prazer em revê-lo em Curvelo." A frase, dita com leveza pelo amigo Léo Cunha quando o recepcionei na minha terra natal, em um longínquo dia de 1991, carregava tanto uma missão quanto um prazer da rima. O escritor guardou-a zelosamente por anos, à espera do encontro de lugar e ocasião certos para resgatá-la. Naquela cidade quente e poeirenta do sertão mineiro, que me viu nascer e amadurecer, suas palavras transformaram-se, naquele instante, não apenas em destino, mas também numa suave melodia para os meus orgulhosos ouvidos. Ao longo dessas décadas, passei a testar novas rimas e sinas a partir do peculiar nome do meu município: desvelo, cotovelo, novelo, demovê-lo... Era como se cada vernáculo usado revelasse algo mágico emergido na confusão do cotidiano. Até marcas de produtos ou estabelecimentos comerciais evocavam elos com o "vêlo". Forçando um pouquinho, até a aguardente José Cuervo, o magazine Riachuelo e a sapataria Corello, criavam para mim fal...

Se o pinguim da geladeira falasse

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Sílvio Ribas Lá estava ele, imponente, sobre a geladeira branca Electrolux de Arminda. O pequeno pinguim de porcelana parecia vivo, observando e ouvindo tudo. De seu trono gelado na cozinha, ele era espectador privilegiado do povo que circulava na velha pensão no centro de Curvelo (MG), uma casa repleta de histórias e afetos. Na sala de TV, o tique-taque do velho relógio de parede parecia dar ritmo aos dias, como um coração marcando o tempo. Do canto da cozinha, o pinguim também ouvia as conversas arrastadas de minhas tias-avós, cheias de lembranças de antigamente, que mais pareciam contos tirados de livros consagrados.  Aquele pássaro elegante que não sabia voar, tachado de símbolo brega, queria mesmo era acompanhar o terço das hóspedes, rezado nos quartos. Essas vozes devotadas ainda ecoam na minha memória como cânticos. Mas, por cima, o simpático artigo de decoração sondava o vaivém no generoso lar de Arminda. Na cozinha, o pinguim era testemunha das delícias que se aqueciam no ...

Mesma praça, novo jardim

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CURVELO, A GRANDE VEREDA DO CERRADO Proposta de intervenções urbanas para transformar a cidade para sempre Ao implementar as sugestões a seguir, inspiradas em outras cidades e adaptadas à realidade local, Curvelo poderá se tornar referência em planejamento urbano sustentável, promovendo o convívio, a cultura, o lazer e o bem-estar para todos os habitantes. Além disso, a transformação do centro da cidade em uma "Grande Vereda do Cerrado" será um convite para que todos explorem e apreciem as belezas naturais e culturais da região. O resultado disso tudo pode consagrar o município como a capital do Circuito Turístico Guimarães Rosa. 1. Conversão de ruas em calçadões Inspirado no modelo de Boston, EUA, onde áreas como a Freedom Trail são exclusivas para pedestres, em Curvelo, podemos selecionar algumas ruas-chave no centro da cidade para serem transformadas em calçadões de tijolos vermelhos. Ruas como a Zuzu Angel podem se tornar espaços ideais para o convívio de pedestres, com á...

Tonho e sua dona

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Sílvio Ribas  Adotei para mim mesmo uma expressão tipicamente caipira, lá do meu sertão em Curvelo (MG), aquela na qual homens chamam suas esposas de “minha dona”. Sei que o significado dela para eles simplesmente equivale ao de “minha mulher”, sem suscitar qualquer conotação de posse. Mas também entendo que esse modo de tratamento revela o sincero respeito pelas “rainhas do lar” ou “patroas”, como se diz no campo e na cidade. “Minha dona” me evoca ainda a palavra italiana que significa mulher. Mas o que mais me traz à memória nessa expressão é uma figura folclórica de meu passado, o seu Antônio, pequeno proprietário rural vizinho do sítio de meu pai, Maurílio, mais conhecido como Tonho da Dedeca. O sobrenome do apelido dele vinha do nome da esposa, a dona Dedeca, com quem fazia um casal boníssimo e de inspiradora simplicidade.  Matreiro como todo mineiro dos Gerais, toda vez que alguém lhe propunha um negócio — fosse um cavalo manco, uma vaca prenha ou um leitão gordo demais ...

A sonata perdida

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Sílvio Ribas Lilibeth – para alguns, Bete; para outros, Lili – deixou o Conservatório de Música da UFMG envolta em uma brisa suave que parecia orquestrada pela própria tarde. O sol, meio tímido e fugidio, tingia a Afonso Penna, principal a Avenida de Belo Horizonte, de tons dourados, como se quisesse eternizar aquele instante.  Lili subiu sozinha na lotação azul da capital mineira ainda absorta nas escalas e melodias que ensaiara durante horas. Seus pensamentos flutuavam, escapando da mente como partituras soltas ao vento. Quando o ônibus cruzou a Getúlio Vargas, algo impalpável, como um acorde inesperado, prendeu-lhe a atenção.  Entre os sons das buzinas, o murmúrio de conversas dispersas e o chiado das portas, ouviu, nítido e etéreo, um solfejo. Como se alguém, escondido entre a plateia distraída de trabalhadores cansados, donas de casa carregando sacolas e estudantes uniformizados, estivesse sussurrando uma melodia que só Lilibeth poderia identificar. Era um trecho da Sonat...