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Tonho e sua dona

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Sílvio Ribas  Adotei para mim mesmo uma expressão tipicamente caipira, lá do meu sertão em Curvelo (MG), aquela na qual homens chamam suas esposas de “minha dona”. Sei que o significado dela para eles simplesmente equivale ao de “minha mulher”, sem suscitar qualquer conotação de posse. Mas também entendo que esse modo de tratamento revela o sincero respeito pelas “rainhas do lar” ou “patroas”, como se diz no campo e na cidade. “Minha dona” me evoca ainda a palavra italiana que significa mulher. Mas o que mais me traz à memória nessa expressão é uma figura folclórica de meu passado, o seu Antônio, pequeno proprietário rural vizinho do sítio de meu pai, Maurílio, mais conhecido como Tonho da Dedeca. O sobrenome do apelido dele vinha do nome da esposa, a dona Dedeca, com quem fazia um casal boníssimo e de inspiradora simplicidade.  Matreiro como todo mineiro dos Gerais, toda vez que alguém lhe propunha um negócio — fosse um cavalo manco, uma vaca prenha ou um leitão gordo demais — ele sol

A sonata perdida

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Sílvio Ribas Lilibeth – para alguns, Bete; para outros, Lili – deixou o Conservatório de Música da UFMG envolta em uma brisa suave que parecia orquestrada pela própria tarde. O sol, meio tímido e fugidio, tingia a Afonso Penna, principal a Avenida de Belo Horizonte, de tons dourados, como se quisesse eternizar aquele instante.  Lili subiu sozinha na lotação azul da capital mineira ainda absorta nas escalas e melodias que ensaiara durante horas. Seus pensamentos flutuavam, escapando da mente como partituras soltas ao vento. Quando o ônibus cruzou a Getúlio Vargas, algo impalpável, como um acorde inesperado, prendeu-lhe a atenção.  Entre os sons das buzinas, o murmúrio de conversas dispersas e o chiado das portas, ouviu, nítido e etéreo, um solfejo. Como se alguém, escondido entre a plateia distraída de trabalhadores cansados, donas de casa carregando sacolas e estudantes uniformizados, estivesse sussurrando uma melodia que só Lilibeth poderia identificar. Era um trecho da Sonata para Vi

Minhas velharias

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Sílvio Ribas Confesso que ainda me surpreendo quando alguém me trata por “senhor”. É verdade que sinto um certo orgulho e gratidão pelo respeito, pela polidez, pela consideração envolta na palavra. Mas, ao mesmo tempo, percebo que existe um jovem dentro de mim que reluta em ser visto como alguém “mais velho”, ainda que eu não tenha exatamente atingido o status de “idoso”.  Ocorre que pertenço a uma geração de transição entre séculos e milênios, que testemunhou uma mudança intensa e rápida na forma de se relacionar com o mundo, de viver e de compreender o cotidiano.  Somos aqueles que escreveram cartas à mão, que datilografaram em máquinas, que ouviram o som das fichas caindo nos orelhões. E hoje, nos vemos em meio ao universo digital, lidando com a velocidade dos bits, das mensagens instantâneas, das buscas na internet e, mais recentemente, com a inteligência artificial.  Adaptamo-nos, e aprendemos a manejar essa rapidez tecnológica, mantendo ainda uma certa sabedoria à moda antiga — a

Paixão herdada

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Sílvio Ribas Nascemos em milênios e regiões brasileiras diferentes. Tivemos também experiências distintas para o mesmo tempo de vida. Mas nutrimos, como pai e filho, algumas poucas e fortes paixões comuns. O desenhar, o desfrute da mitologia moderna da cultura de massa, The Beatles e os hits dos anos 1980. A maior paixão herdada por ele ou a minha continuada nele é o Clube Atlético Mineiro. Somos Galo. Ele talvez até mais que eu e o avô juntos. Compartilhamos todos essa fé com alegria.  Obrigado, Glorioso, por mais essa emoção.  

Memórias agarradas

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  Sílvio Ribas Um aluno com a sua pasta pendurada no ombro ruma diariamente pelas trilhas de pedras, terra e cimento do longo trajeto de volta da escola para casa. Ele repete o mesmo caminho, com desvios apenas ocasionais, cruzando ruas, avenidas e descuidados matinhos à beira das calçadas. Dessa caminhada vinham os constantes carrapichos, as pequenas sementes espinhentas que se agarram sem pedir licença nas suas meias, barras da calça e até nos cadarços dos tênis. Nem mesmo os que iam de bicicleta para o lar escapam dos danados, alguns bem escondidos nas dobras das roupas. Este é um retrato de minha infância, pintado na minha memória daqueles saudosos anos 1970 e 1980 de uma pequena, poeirenta e quente Curvelo (MG). Enquanto caminhava nos fins de tarde, observava flores silvestres, borboletas e pés de mamona que acenavam por trás dos muros dos quintais. Só ou com colegas que me acompanhavam até onde dava, nem reparava as plantas que roçam as minhas pernas. Mas, ao chegar da qu

Trinca de reis da comunicação

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  Sílvio Ribas Neste fim de semana, com a notícia da morte do publicitário Washington Olivetto, me dei conta de que, em apenas algumas semanas deste 2024, perdi minhas três maiores referências em comunicação social. Com Silvio Santos e Cid Moreira, ele forma a trinca de reis que admirava desde os longínquos tempos da Faculdade de Comunicação da PUC Minas. Lá estudei seus perfis, talentos e façanhas, ainda sem paralelos nos ramos onde cada um atuou. Primeiro a partir para a eternidade, o rei da televisão Silvio Santos é um mito como comunicador e empresário. Criou sua própria rede, seu próprio estilo e sua própria e sua página no coração de gerações de brasileiros. O senhor sorriso e dono dos domingos abriu espaços para inovações e novas estrelas. Divertiu e entrou para o imaginário popular. Insubstituível. Depois foi a vez de se calar para sempre o rei da voz Cid Moreira, o homem do boa noite dito milhares de vezes por décadas a fio a milhões de brasileiros. Depois de ser a cara do pri

Anatomia do sertanejo dos Gerais

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Sílvio Ribas O corpo místico do sertanejo dos Gerais reúne partes que somam um todo único e admirável. Vertebrado, curtido e abençoado, ele descreve uma anatomia que espanta e cativa mentes e corações. Tome tento: Morada de ideias fresquinhas e lembranças defumadas, a cabeça do sertanejo não para. Como casinha de João-de-Barro, feita de precisão e persistência, nela vivem pensamentos inquietos, lendas e conselhos. Seus braços são ferramentas de força bruta e ternura, como enxadas que rasgam a terra seca em busca do fértil ventre. São também ripas de cercas ao redor dos afetos, protegendo o seu tronco e o seu sagrado. Quando se erguem, mãos despontam desses membros desatando nós da angústia, como que destocando raízes profundas do chão árido. Calejadas e vigorosas, encontram na dureza da lida a suavidade dos gestos gentis. No peito, um tacho de cobre mistura os ingredientes mais sublimes da vida – amores, esperanças, sonhos. Lá são amassados, aquecidos em alma ardente, crescidos