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Orgulho geodésico

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  Sílvio Ribas   O mapa do tesouro da mineiridade marca um X no solo de Curvelo (MG). Por décadas, os filhos e amigos da cidade souberam para onde apontar quando falavam do “centro geodésico” do estado. Ao lado direito da entrada da Igreja da Imaculada Conceição, no bairro Tibira, havia um bloco de concreto que indicava um especial ponto de Minas Gerais estudado por geógrafos, agrimensores e cartógrafos. Aquele dado técnico era também patrimônio dos curvelanos, cultivado com fervor. A marca simples, que poucos olhos de fora notavam, estava bem guardada na memória daquela gente e a enchia de orgulho. O ponto de convergência do grande território mineiro virou reportagem na TV e publicidade da Prefeitura e do comércio local. Poética e oficialmente, o município adotou a alcunha de coração do estado. O tempo passou e o marco provisório deu lugar a um monumento mais elaborado, de traço moderno, dividido com o jardim lateral da igreja. Com arco e setas, o símbolo novo visav...

A vida não cabe num prompt

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Sílvio Ribas A última cena de Inteligência Artificial (Artificial Intelligence: AI,  2001), dirigido pelo genial Steven Spielberg, é uma daquelas que ficam conosco — não só pela beleza, mas pelo comichão existencial que produz. O mundo humano se extinguiu há milênios. Tudo o que restou foi um menino-robô, testemunha solitária da fragilidade e da grandeza do que fomos. À sua frente, uma forma avançada e alienígena de inteligência tenta compreender a espécie que desapareceu. Coube à IA  exalar aquilo que foi humanidade. Essa imagem ficcional nos remete à realidade do presente. Desde 2024, assistimos à expansão acelerada da IA no cotidiano com espantosa naturalidade. Abrimos as portas de nossas casas, corações e mentes às máquinas que aprendem, simulam e respondem com rapidez inquietante e cada vez mais precisão. Passamos a conviver com textos, imagens e vozes que não vêm de seres vivos, mas de comandos — prompts, como se convencionou chamar. E quando o mundo começa a ser de...

A velha estação e seus presidentes

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Sílvio Ribas Em só duas ocasiões, ambas devotadas aos trilhos, Curvelo recepcionou a maior autoridade do país. Separados por quase um século, os presidentes Rodrigues Alves e Fernando Henrique Cardoso (FHC) honraram a cidade mineira com as suas presenças. O primeiro veio para pré-inaugurar a velha estação ferroviária, em 1904, e o outro, para aposentá-la de vez, em 1997. Foram nos 93 anos que separam as breves visitas presidenciais que aquele município sertanejo encenou o vai-e-vem de pessoas, mercadorias e sonhos pela via férrea. Embarcados na mesma locomotiva histórica, os chefes do Executivo prometeram ao povo dias melhores para o Brasil. Depois deles, a retirada dos trilhos da zona urbana moldou paisagens e negócios. Em 3 de julho de 1997, FHC desfilou de trem por oito quilômetros para inaugurar o novo trecho da linha e a nova estação. Moradores emocionados lançaram flores sobre a composição. Em discurso, o presidente recordou que a remoção da linha do centro da cidade era an...

O vovozinho e o lobo bom

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Sílvio Ribas A clássica fábula de Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault, ganhou versão inusitada na minha vida — com personagens trocados, um cenário sertanejo e, felizmente, um desfecho tão encantador quanto.  Em vez de uma menina de capuz vermelho e uma floresta sombria, havia o meu avô materno, Ely Ribas, lá na minha terra natal, Curvelo (MG), daqueles anos 1980. Ele morava na rua detrás da minha, numa aconchegante casa. Naquela pequena cidade no coração do sertão mineiro, um conto mágico ocorreu. O lobo dessa prosa era um belíssimo lobo-guará que surgiu no alpendre do doce vovozinho. Ele não era mau. Só estava assustado e ferido. O animal, esguio e imponente, tinha mais medo dos humanos do que o inverso. Vinha fugido de queimadas que se alastravam pelo cerrado, expulso para o meio urbano por um mundo cada vez mais hostil ao seu.  Não fez qualquer mal ao velho fazendeiro que o encontrou. Seu Ely, com a serenidade de quem já viu muito, só chamou a polícia florestal. Os a...

"O fim do mundo está acabando"

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 Sílvio Ribas Durante boa parte da minha vida, ouvi a constante promessa de que o mundo acabaria em breve. Não por guerras ou catástrofes ambientais, mas por profecias, boatos e teorias que vinham com suspense hollywoodiano. Os iminentes apocalipses davam sustos, mas, graças a Deus, nunca chegam. Lembro bem da virada para este século. Era como se estivéssemos vivendo dentro de um filme de ficção científica. O “bug do milênio” — o temido Y2K — prometia transformar computadores em feras desgovernadas, desligar usinas, fazer aviões despencarem e colapsar o sistema bancário mundial. Quem viveu o réveillon de 1999 para 2000 com um olho no céu e outro no caixa eletrônico sabe: não houve bug, só uma queima de fogos a mais e um alívio geral por não ter ocorrido nada digno dos jornais do dia seguinte. Ainda teve gente que repetiu a cantilena na virada de 2000 para 2001. Nada. Já a profecia popular do “de mil passará, de dois mil não passará” parecia saída de rima de benzedeira. Era sussurra...

A guerra de Curvelo contra as muriçocas

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S ílvio Ribas Por décadas, Curvelo (MG) travou uma guerra contra um exército numeroso e obstinado. Como praga bíblica, nuvens de pequenos insetos alados invadiam todos os lares, desde os modestos aos abastados. Impiedosas, as muriçocas azucrinavam cidadãos de qualquer idade com os seus zumbidos irritantes e picadas insistentes, desafiando as famílias e as autoridades. Os recursos da cidade para combater as insolentes e onipresentes muriçocas naqueles anos 1970 e 1980 tinham eficácia limitada, bem piores que os disponíveis hoje contra todo tipo de mosquito. Os pernilongos seguiam roubando nosso sono e cobrindo nossa pele de desagradáveis marcas da noite anterior. Era só chegar o verão para elas dominarem a área. No embalo das chuvas e das altas temperaturas, milhões de pequenas criaturas voadoras emergiam das ruas, dos quintais e das profundezas da famosa grota, reduto pantanoso que se tornava, a cada estação, o seu principal foco de reprodução. A prefeitura até tentava reagir com óleo ...

Os meus papas

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  A fé que move montanhas faz um homem ser o líder espiritual de um bilhão de fiéis. Para outra parcela expressiva da humanidade ele é um mensageiro da paz em tempos de intolerância. Francisco, esse pastor que se ergue na simplicidade, foi o papa do divino mistério de ser também nosso irmão. Morreu neste 21 de abril, deixando um legado que se estende muito além das fronteiras da Igreja. O argentino Jorge Bergoglio fez história já no primeiro minuto do pontificado ao se dizer pecador, fazer piada com o conclave e pedir orações. Depois vieram declarações, encíclicas e gestos dignos de representante do Criador, abraçando os que mais sofrem. Também carregou, como todo homem, suas contradições: humanamente falho, não esteve no Brasil para celebrar os 300 anos de Nossa Senhora Aparecida, ausência interpretada como rancor político. Com mais de meio século de batizado na Igreja Católica Apostólica Romana, me regozijo por ter sido conduzido por cinco notáveis sucessores de Pedro. Lembro-me ...